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Flamengo X Globo: Quem é o Dono da Bola?

julho 4, 2020
white soccer ball

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A Medida Provisória 984 – a MP do Flamengo, como ficou conhecida – está provocando uma cadeia de eventos que pode mudar tanto a forma de negociação dos direitos de transmissão do futebol quanto o seu próprio calendário de competições, com o eventual esvaziamento dos estaduais.

Pela redação da MP, que precisa ainda ser apreciada pelo Congresso no prazo máximo de 120 dias, os direitos de transmissão da partida agora são do time mandante, que pode decidir sozinho para qual mídia ele quer comercializar tais direitos, a saber, tevês abertas, fechadas, plataformas de streaming, Facebook etc. Antes da MP a lei dizia que os direitos de transmissão do jogo eram dos dois times envolvidos na partida.

A Globo e o Flamengo estão em lados opostos nesta questão. A ironia é que a Globo ajudou a criar essa situação que a prejudica agora a partir de uma decisão dela própria no passado. Para entender toda a estória, é preciso recuar na comercialização dos direitos de transmissão do Brasileirão em 2011.

A venda dos direitos de transmissão pela TV do campeonato brasileiro para o triênio 2012-2014 tinha virado uma novela. Já fazia bastante tempo que a Globo era a detentora exclusiva desses direitos. Naquela época, o chamado Clube dos 13 tinha a autorização dos clubes do campeonato da série A para comercializar os direitos.

A Globo fez uma oferta pelos direitos de TV aberta, TV paga e pay-per-view para o triênio 2012-2014. Desde 1995, a Record tinha começado a mostrar interesse em comprar esses direitos de transmissão. Nunca ficou muito clara a regra de negociação. Até 2011, o Clube dos Treze costumava dar um desconto de 10% sobre a oferta da Record para a Globo, alegando que esta emissora já era sua cliente. A Globo pagara em torno de 500 milhões por ano pelos direitos de transmissão do triênio 2009-2011.

Já existia um conjunto de coisas difíceis de ser explicado aí. Em primeiro lugar, é uma prática anticompetitiva dar esse desconto. Em segundo lugar, por que a Record não recorreu ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) reclamando ter sido lesada no campo competitivo? Em terceiro lugar, por que o próprio Cade não interveio numa área que desperta tanto interesse para milhões de torcedores de todos os times?

Na negociação referente ao triênio 2012-2014, o Cade finalmente se mexera um pouco e acertara com o Clube dos 13 um mecanismo mais competitivo, ou seja, uma licitação dos direitos para as emissoras interessadas, ao melhor estilo “the winner takes all”.

A ideia era estimular a disputa pelo mercado, que, sem dúvida, é uma fonte de competição, como bem observou o economista Harold Demsetz no seu artigo clássico de 1968, intitulado “Why regulate utilities?“. E funciona bem no caso de monopólios naturais, em que considerações tecnológicas fazem com que apenas uma empresa seja eficiente em termos de custo de produção. Mas esse tipo de competição não faz sentido no mercado de transmissão de direitos de TV, uma vez que não tem características de monopólio natural.

A licitação foi feita e a RedeTV apresentou a proposta vencedora naquele momento: 516 milhões reais por ano pelos direitos para o triênio 2012-14. A Record acabou não apresentando proposta. A Globo já tinha anunciado que não concordava com esse tipo de leilão, tanto que não participou da licitação e partiu para a negociação direta com os clubes, dando um chapéu no Clube dos 13 e no Cade.

Isso talvez seja a coisa mais estranha dessa estória. Com os direitos legais de transmissão sendo dos dois times envolvidos na partida, não faz sentido um clube negociar sozinho os direitos de seus jogos se não combinar com os outros clubes. A negociação precisa ser conjunta. Isso porque existe uma espécie de externalidade de rede nessa brincadeira.

Para entender externalidades de rede, vale a pena fazer aqui uma digressão. Pegue a descoberta do telefone por Graham Bell. Alguém poderia dizer que o telefone foi inventado quando Bell fez o primeiro aparelho de telefone. Alguém um pouco mais arguto vai dizer que o telefone só foi realmente inventado quando Bell construiu o segundo aparelho e deu para outra pessoa a fim de que eles pudessem bater um papinho à distância… Só aí que podemos dizer que a telefonia começou a existir de fato.

Existem certos bens ou serviços que aumentam a sua utilidade – e seu valor – se outras pessoas também têm e usam esses bens e serviços, tais como o telefone, o Instagram, Whatsapp, Telegram, Zoom etc.

Talvez seja essa a explicação porque a Microsoft seja dominante no segmento de sistemas operacionais, mesmo tendo um produto inferior ao da Apple. Existe muita gente usando os computadores PC com o seu sistema operacional Windows. Fica mais fácil tirar uma dúvida com o colega do lado, que provavelmente também usa o mesmo sistema operacional. A vantagem de usar esse sistema é que muita gente usa, gerando externalidade positiva de rede.

Voltando para a vaca fria, o que adianta o Flamengo negociar os seus direitos com a Globo por uma grande soma de dinheiro se os outros dezenove clubes não assinarem? A Globo não poderá transmitir nenhuma partida do campeonato. A utilidade do acordo com o Flamengo depende que os outros também entrem em acordo com a mesma emissora. Por causa disso, os direitos de transmissão são comumente comercializados por uma liga que garante que todos os clubes do campeonato aceitarão ter os seus direitos negociados conjuntamente.

Com a mudança na lei proposta pela MP 984, a situação muda um pouco de figura. Cada time da série A – e não apenas o Flamengo – garante a negociação de seus dezenove jogos do Brasileirão em casa com quem quiser.

Na negociação direta com os clubes na regra dos direitos para o mandante do jogo, os clubes de maiores torcidas, como Flamengo e Corinthians, tendem a fechar acordos mais vantajosos para eles. Times médios e pequenos têm menos poder de barganha. Isso pode causar o aumento da desigualdade econômico-financeira entre os times, promovendo a tão temida espanholização do futebol brasileiro.

Como resolver esse problema? Mesmo que imperfeita, uma forma para equilibrar o poder de barganha é a composição de blocos de times pequenos e médios para negociar conjuntamente os direitos deles. No limite, se houver, de um lado, Flamengo e Corinthians e, do outro, um grupo com os 18 times restantes da série A, o poder de barganha daqueles dois times grandes diminui consideravelmente. Por exemplo, a tevê que fechar só com Flamengo e Corinthians garante a transmissão de apenas 38 jogos do Brasileirão. O Bloco dos 18 tem a esmagadora maioria dos jogos (342 no total) para negociar com quem quiser.

Mas essa não é a solução ideal para atingir a maximização da receita obtida com a negociação dos direitos para os clubes. Para isso, é preciso se espelhar na forma como são negociados os direitos de transmissão de jogos dos esporte profissionais americanos.

A liga de futebol americano (NFL) vende os jogos do seu campeonato em pacotes para mais de uma emissora. Nos EUA, aos domingos, no período da tarde, existem dois canais (Fox e CBS) que transmitem dois jogos cada um. Depois à noite, tem o Sunday Night Football, um jogo exclusivo só passado na rede NBC. E na segunda-feira, tem o Monday Night Football, transmitido exclusivamente pela ESPN. Ainda há jogos na quinta-feira à noite que a Fox passa.

Mas não precisamos nem mudar de esporte para copiar esse modelo, podendo ficar no soccer mesmo. A Bundesliga, a liga alemã de futebol, negocia também os jogos de seus campeonatos em pacotes, provavelmente inspirada no exemplo dos esportes americanos.

Poderia ter algo parecido nestes tristes trópicos com o Brasileirão. Em primeiro lugar, é preciso que os clubes se unam e formem uma liga para negociar conjuntamente os direitos de transmissão com as diversas plataformas de mídia.

Os jogos seriam empacotados. Cada pacote de jogo seria leiloado para quem tivesse mais interesse. A licitação de cada pacote independentemente é condição fundamental para que se atinja a eficiência defendida por Demsetz e a consequente maximização da receita dos direitos.

Como um exemplo desse modelo de negociação, o jogo das quarta-feiras das 21h30 seria licitado em um pacote, enquanto o jogo do domingo às 16h constituiria outro pacote a ser comercializado em outra licitação diferente. Como muito provavelmente a Globo gostaria de ter esses dois pacotes, ela deveria dar os lances mais altos nessas duas licitações e levar esses jogos.

Para estimular a competição, é preciso estipular que nenhuma plataforma de mídia poderá adquirir mais do que dois pacotes. No limite, cada jogo da rodada se constitui num pacote a ser customizado, conforme o interesse das plataformas.

Por exemplo, poderia haver outro jogo da série A na quarta-feira às 19h30. Poderia ainda haver o jogo da quinta à noite, o jogo do sábado à tarde, o do domingo às 11h, o do domingo às 18h, o da segunda à noite etc. É possível ter dez pacotes diferentes sendo leiloados em licitações independentes para várias plataformas de mídia (tevês aberta e fechadas, Facebook, Amazon, DAZN, outros streamings etc) a fim de maximizar a receita dos direitos.

Evidentemente que isso não interessa à Rede Globo. Vai ter emissora que comprará o pacote do jogo das quartas-feiras às 20h30 para competir com o Jornal Nacional e a novela. Também reduziria tremendamente o apelo do pay-per-view e sua receita, pois vai aumentar muito a oferta de jogos gratuitos aos torcedores pela TV e plataformas abertas.

Mas o interesse do público não deve se curvar ao interesse de uma emissora. Esse sistema é mais competitivo e traz melhores resultados para os times e seus torcedores. É a verdadeira mão invisível em ação. Ou melhor dizendo: é o “pé invisível” de Adam Smith fazendo um golaço! Com eco: aço-aço-aço!

Trilha Sonora do Post

“Pumped Up Kicks” do Foster The People: